Paulo José e minha Vó

bailey aschimdt
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Que semana triste. Perdemos dois gigantes brasileiros. Tarcísio Meira e Paulo José, cada um ao seu estilo, dois mundos que se cruzaram, viveram caminhos paralelos, emocionaram um país inteiro e deixam o palco quase juntos.

São unanimidades. Gênios da nossa história. Merecem todos os aplausos do mundo.

Com Paulo José, minha admiração tinha um fator a mais. Não o conheci. Nunca tive o privilégio de encontrá-lo. Sua lista infinita de trabalhos brilhantes fala mais do que qualquer coisa. Mas com ele criei um vínculo indireto e improvável, que passa pela vida e memória da minha vó.

Dona Célia, mãe do meu pai, teve mal de Parkinson por muitos anos. No início, era imperceptível o tremor, mas com o tempo foi se agravando. A caminhada ficando mais lenta, os movimentos mais limitados. O curso natural da doença numa época em que não havia muitas soluções ainda. Mesmo com a medicação reduzindo os tremores, não fazia milagres.

Mas ela não costumava reclamar disso. Levava como podia. Sem muito drama. De alguma forma, assimilou como uma parte da vida e seguiu adiante vivendo seus dias como queria e como dava.

Minha vó tinha um senso de humor que eu amava. Era capaz de dar uma bronca por um motivo bobo e no meio da bronca cair na gargalhada por algum deslize ou por perceber que era besteira. A mesma coisa quando ela tentava disfarçar algum efeito da doença, como não deixar a mão tremer usando uma colherzinha pequena pra se servir, e no meio do caminho percebia que não dava pra esconder. Era uma gargalhada deliciosa. Tragicômica. De um afeto que só surge quando se tem muito amor entre os presentes. Ao ponto de conviver tanto com aquela dor, que só restava brincar com ela como podia.

Dona Célia misturava uma firmeza, uma sensibilidade e uma doçura que eu vi raras vezes. Uma mistura que acredito ter muito a ver com Paulo José também. Neto é suspeito pra falar, mas é como eu me lembro.

Na minha adolescência, às vezes aos domingos passávamos a tarde juntos vendo TV. Numa dessas tardes, Paulo José apareceu na tela. Não me lembro qual era o programa, mas ele era o convidado especial. Já nessa época estava com mal de Parkinson. Um leve tremor na mão, quase imperceptível. Minha vó percebeu em segundos: “Ele tem Parkinson”.

Uma frase que eu ouviria de algumas pessoas ao se referirem ao grande artista nos anos seguintes, em geral com algum tom de tristeza na voz. Natural, ninguém fica feliz ao ver um ídolo vítima de uma doença tão dura. Mas na voz da minha vó veio de uma forma diferente, acompanhada de um brilho nos olhos. Não era um lamento, era outra coisa, mais profunda.

Paulo José era não só um ícone da atuação, mas a força e a sensibilidade em pessoa. Minha vó não elaborou esse sentimento, mas eu conhecia ela o suficiente pra entender o olhar. Ela via nele um reflexo de esperança. Se aquele homem gigante tinha Parkinson e continuava forte daquele jeito, ela não podia reclamar.

E não reclamava. Não pra mim, pelo menos.

A arte, aliás, era um dos santos remédios. Dizem que quando Paulo entrava em cena, o tremor parava instantaneamente e só voltava quando a gravação terminava. Pode parecer história pra quem nunca viu, mas vi coisas parecidas acontecerem com a minha vó. Quando ela sentava diante do piano pra tocar, a mão funcionava plenamente do início ao final da música. Quando terminava, o tremor voltava. Parecia mágica.

Às vezes ela queria relembrar os tempos de sapateado, e conseguia incrivelmente fazer os passos. A bengala, que a ajudava a andar, virava um acessório quase inútil, servindo mais de apoio psicológico do que físico por alguns segundos.

Essa magia da arte, que tanto nos move, também passou a ser representada por Paulo José de alguma maneira na vida da minha vó. Não era uma idolatria declarada. Acho que poucos sequer perceberam. Ela nunca falou disso. Mas passamos muitas tardes assistindo TV juntos nos últimos anos da vida dela, e, todas as vezes em que Paulo José aparecia, o brilho nos olhos voltava da mesma forma. Ele era um herói silencioso pra ela. Uma prova de que era possível seguir vivendo, apesar do Parkinson.

Minha vó se foi em 2009, mas Paulo José continuou representando ela de alguma forma pra mim. Sempre que ele aparece nas telas, aquele brilho nos olhos dela me vêm à mente.

Alguns dias depois da morte dela, tive um sonho lindo. Eu chegava na sala e ela vinha caminhando bem devagarzinho pelo corredor, já na fase final muito dependente da bengala. De repente, largava a bengala e começava a dançar com uma força e uma agilidade de menina. Um sorriso enorme no rosto e apontando pro chão: “Olha, Dan, sem a bengala!”.

É a última imagem que guardo dela. Dançando, feliz, livre, leve e solta.

Minha vó e Paulo José não se conheceram em vida, mas espero que eles se encontrem e virem amigos em algum lugar nesse mistério que é o pós-vida. Dançando, brincando, iluminando o mundo com sorrisos que tanto precisamos.

Vá em paz, Paulo. Obrigado por tanto.

* Daniel Fraiha é jornalista e roteirista, Mestre em Criação e Produção de Conteúdos Digitais pela UFRJ e sócio da Projéteis – Criação e Roteiro

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