Nova Bienal de SP fala de pandemia, resistência – e mira Bolsonaro

bailey aschimdt
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Entre 1962 e 1963, o amazonense Thiago de Mello publicou o poema Madrugada Camponesa, que abordava a realidade de trabalhadores que atravessavam madrugadas em suas ocupações no campo. A obra se encerra em tom de esperança: “Faz escuro mas eu canto / porque a manhã vai chegar.” O texto só viu a luz do dia em 1965 e, a partir de então, ganhou nova conotação diante do obscurantismo imposto pelo golpe militar. Agora, no Brasil de 2021, eis que seus versos ressurgem como mote da 34ª Bienal de São Paulo, que será inaugurada neste sábado, 4, no Parque do Ibirapuera, na Zona Sul paulistana.

Fachada da 34ª edição da Bienal de São Paulo, cujo tema é ‘Faz escuro mas eu canto’Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo/.

A abertura da tradicional mostra ocorre em meio à pandemia, mas não foi a Covid-19 que motivou o tema Faz Escuro Mas Eu Canto. Originalmente pensado entre 2018 e 2019 – a Bienal aconteceria em 2020, mas foi adiada por causa dele mesmo, o coronavírus -, o mote era a princípio 100% político: diante da polarizada eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e do avanço da extrema-direita no mundo, os curadores de arte vislumbravam tempos sombrios para o país. Fora da política, o cenário também não animava: desastres climáticos, como um incêndio na Amazônia que escureceu a cidade de São Paulo, e atos de homofobia e racismo tomavam o cotidiano. Já eram tempos sombrios – e mal imaginavam os curadores da Bienal que a pandemia traria ainda mais escuridão. Repleta de obras que buscam refletir sobre a força humana em resistir, é como se a Bienal dissesse o mesmo: sobrevivemos à pandemia, mas também a tantas outras intempéries que assolam o país.

“Um dos efeitos mais perversos do coronavírus foi o agravamento de outras contradições e violências que já estavam em curso antes mesmo da pandemia chegar”, diz o curador-adjunto Paulo Miyada, braço-direito do italiano Jacopo Crivelli Visconti, que comanda a edição deste ano. Por esse motivo, muitas das obras escolhidas nos idos de 2019 foram mantidas. Ocupando uma parede inteira está uma instalação sobre Fred Douglass, um escravo liberto nos Estados Unidos que se tornou símbolo da luta antirracista e anti-escravidão no século XIX. Retratos do “homem mais fotografado da época” atraem os olhos de quem sobe a rampa ao 2º pavimento da Bienal. As fotos de Douglass compõem o que a curadoria chama de “enunciado” – instalações que visam amplificar algumas discussões propostas por obras nos arredores. Ao lado delas, uma corda criada pelo artista Arjan Martins se estende pelo andar em forma de triângulo, em referência à rota do tráfico de escravos no Oceano Atlântico. Uma instalação de Tony Cokes, composta de slides com frases em fundo monocromatico, coloca a pergunta: quanto veicular imagens de protestos na mídia contribui para causas sociais?

No andar abaixo, há também outro núcleo composto por três objetos pertencentes ao acervo do Museu Nacional, e que sobreviveram ao incêndio que destruiu seu imponente prédio em 2018. Entre eles, está o meteorito Santa Luzia, o segundo maior objeto espacial no Brasil. Nos arredores, nomes de povos indígenas da América do Sul, dizimados no período colonial, estampam as paredes em letras garrafais, fruto do trabalho do artista alemão Lothar Baumgarten. A presença indígena, aliás, é patente na 34ª edição da Bienal: são cinco brasileiros e quatro artistas de outros países que participam do evento, como Abel Rodriguez, nascido na Amazônia colombiana, ou Daiara Tukano, do povo Yepá Mahsã do Alto Rio Negro, região fronteiriça entre Brasil, Venezuela e Colômbia. Na obra do paranaense Úyra, duas séries de fotografias se entrelaçam numa espécie de cobra em movimento.

Instalação com retratos de Fred Douglass, enunciado da 34ª edição da Bienal de São PauloLevi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo/.

 

O meteorito de Santa Luzia, em enunciado da 34ª Bienal de São PauloLevi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo/.

Nos três andares, a Bienal reúne obras de 91 artistas de 39 países. Antonio Dias (1944-2018), Carmela Gross, Lygia Pape (1927-2004) e Lasar Segall (1889-1957) dividem espaço com talentos do Brasil atual, como a ativista do movimento negro Musa Michelle Mattiuzzi e Paulo Nazareth, com sua performance Vento. Além de pautas identitárias, os brasileiros refletem, principalmente, sobre os anos de ditadura. Um painel contendo um enunciado de Hélio Oiticica (1937-1980) reflete sobre a naturalização da morte, de quando descobriu o assassinato de colegas nos anos de chumbo. Uma gravura de Regina Silveira, criada no auge da repressão, traz um tanque militar com uma sombra distorcida que jorra pelo papel. No plano presente, as fotografias de Mauro Restiffe nas cerimônias de posse de Lula, em 2003, e de Bolsonaro, em 2019, evoca um país que, mesmo em retratos distantes em mais de uma década, não avança. São duas encarnações de um Brasil polarizado, que se sobrepõem e passam a ideia de que estamos fadados a repetir o passado.

Apesar dos textos de apoio que acompanham as obras, os curadores reforçam que cada visitante deve tirar as próprias conclusões. “Mesmo e inclusive por causa da pandemia, a arte deve manter o compromisso de promover oportunidades de encontro – de forma segura e respeitosa”, diz Miyada. “Segura”, aliás, é a palavra da vez: para entrar no Pavilhão, é obrigatório o uso de máscaras e a apresentação de um comprovante de vacinação contra Covid-19, com pelo menos uma dose. O tal “passaporte da vacina” poderá ser apresentado por aplicativo no celular (o chamado E-saúde) ou em formato físico. Não haverá restrição de capacidade, tampouco necessidade de agendamento de visitas.

A 34ª Bienal de São Paulo acontece entre 4 de setembro e 5 de dezembro e tem entrada gratuita. Confira a programação completa aqui.

 

 

 

 

 

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